A Loira da Senhor dos Passos.
- salvorepresentacao
- 2 de mai.
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Luzia era loira. Mas não uma loira qualquer, dessas que piscam nos outdoors com sorrisos de fluor e promessas de felicidade em tubo. Não. Luzia era uma loira em maiúsculas. Uma loira definitiva, quase teológica. Seus cabelos, sempre presos em coques perfeitos, pareciam ter sido penteados por querubins meticulosos que abandonaram o céu por um estágio no Instituto de Beleza Luba.
Na loja de armarinhos "Botão de Ouro", encravada como uma pedra preciosa no coração da Rua Senhor dos Passos, Luzia era a imperatriz do pequeno império dos apetrechos domésticos. Vendia linhas, fitas, agulhas e, sem saber, vendia também suspiros. As clientes, viúvas discretas de véus cinzentos, mães zelosas e suas filhas em botão vinham pelas miçangas e ficavam por ela. Algumas voltavam só para vê-la dobrar tecidos como se estivessem lidando com as vestes do próprio Cristo.
Era uma beleza silenciosa, a de Luzia. Não seduzia com gestos, mas com a quietude de quem sabe que o sol não precisa gritar para brilhar. Foi então que Alfredo apareceu.
Quarta-feira, dia que não promete nada. Bancário, funcionário do Banco Nacional do Comércio, agência Bom Fim. Cabelos domados com tanto Gumex que resistiriam a nordestão de Capão da Canoa. Calças com vincos ortogonais, sapatos brilhando como consciência de seminarista.
Entrou no bonde na parada do Pronto Socorro, já prevendo a solidão das poltronas de madeira e o rangido filosófico das rodas. Mas lá estava ela. Sentada ao lado de uma senhora obesa de vestido com flores tropicais que mais pareciam agredir do que enfeitar.
Luzia. Vestido azul, laço na cintura, auréola de luz de fim de tarde ao redor dos cabelos. Se Alfredo fosse um pouco mais místico, teria tirado os sapatos. Se fosse poeta, teria escrito soneto. Mas era bancário.
A senhora obesa desceu na Vicente da Fontoura bufando, e o destino, caprichoso como sempre, deixou um lugar vago ao lado da loira.
Alfredo sentou-se com a solenidade de quem assina um contrato. Endireitou-se, pigarreou, olhou de lado. E então, com a coragem dos tímidos e a imprudência dos apaixonados, saudou-a com a cabeça e murmurou:
— Boa tarde.
Luzia respondeu com um sorriso. Pequeno, quase um suspiro com forma. Mas Alfredo sentiu-se atingido como por uma luz celestial. Em sua cabeça ecoou uma frase que não sabia de onde viera:
“Parei da tua, guria!”
Depois disso, o mundo virou novela. Alfredo começou a comparecer na loja com frequência indecente. Passava pelos novelos de lã como quem percorre uma floresta encantada. Inventava projetos de crochê que jamais iniciaria. Um dia perguntou se existia linha que costurasse sonhos. Luzia riu. Um riso curto, mas cúmplice.
As funcionárias da loja começaram a notar. As viúvas cochichavam. As mães sorriam de canto de boca. E Luzia? Luzia continuava com seus coques celestiais e sua aura de mistério. Às vezes, parecia que flertava. Outras, que era apenas o reflexo de alguma luz interior que ninguém entendia bem.
Alfredo jamais soube se era correspondido ou apenas mais um entre os muitos que ficaram presos no laço azul da cintura de Luzia. Mas continuou indo. Porque, no fundo, sabia que havia pessoas que não se possuem apenas se contemplam, como vitrais de igreja. E Luzia, com sua doçura silenciosa e cabelos angelicais, era dessas.
E mesmo que nunca se beijassem, mesmo que jamais trocassem mais que um “bom dia” e um sorriso, Alfredo bancário, vincado e engraxado, sabia que havia amado. Do jeito que só os contadores de moedas sabem amar: devagar, em prestações, com juros de saudade.
As semanas passaram, e Alfredo persistia. Já tinha comprado mais metros de renda do que qualquer senhor solteiro em idade regular. A funcionária da loja dona Anastácia, que tinha um cabelo cor de ferrugem e senso de observação de detetive da Scotland Yard comentou certa vez:
— Ou esse moço tá abrindo um bordado ou tá tentando conquistar Luzia com ponto cruz.
Um dia, decidido a dar o próximo passo, Alfredo preparou uma carta. Nada de telegrama da western, que ele chamava de "coisa de jovem apressado". Escreveu com caneta tinteiro, caprichou na caligrafia e borrifou um leve toque de loção pós-barba Lancaster, "para deixar um aroma de responsabilidade", como dizia o frasco.
Na carta, Alfredo se declarava. Dizia coisas como: “seus olhos são como contas de vidro da prateleira superior, que ninguém alcança sem escada” e “sinto vontade de passar o resto da vida organizando novelos ao seu lado”. Assinou com um "do seu admirador rendado" e deixou o envelope discretamente sobre o balcão da loja, entre duas caixas de alfinetes.
Luzia pegou o envelope, olhou para Alfredo que já suava mais que torcedor do Grêmio em dia de Grenal, e abriu com calma. Leu a carta, sorriu de um jeito tão enigmático que até a Nossa Senhora do quadro da parede pareceu franzir o cenho.
Então, olhou para ele e disse:
— Senhor Alfredo, o senhor é muito gentil... Mas, veja bem, eu sou Testemunha de Botões.
— Perdão? Alfredo perguntou, pálido como gaze.
— É uma brincadeira, disse Luzia, rindo.
— Mas é verdade que eu não namoro. Tenho uma promessa com Santa Agulhinha.
Dona Anastácia se engasgou de rir. A viúva da renda preta quase caiu da cadeira. Alfredo, digno até na rejeição, curvou a cabeça e respondeu:
— Entendo... Então, a senhora costura sozinha?
— Sozinha, não, disse Luzia.
— Costuro com o destino. E piscou.
No outro dia, Alfredo voltou à loja. Comprou fita cetim e uma tesoura cor-de-rosa.
— Para quê tudo isso, senhor Alfredo? perguntou dona Anastácia.
— Vou abrir um curso de bordado lá no Banco. Pelo menos lá, se ninguém quiser casar comigo, eu ensino ponto cheio.
E assim foi. Alfredo virou uma celebridade local: o primeiro bancário que bordava borboletas em guardanapos durante o intervalo do café. Nunca mais encontrou uma loira como Luzia, mas passou a dizer, com um sorriso de canto de boca:
— Amar é como costurar à mão: demora, fura o dedo, e no fim, às vezes, nem serve. Mas ah, como a gente aprende...
Parabéns Roberto. Comprei teu livro qualquer hora te levo para autografar.